Nota do Editor: Edvaldo Soares é professor do Departamento de Educação e Desenvolvimento Humano da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e doutor em Neurociências e Comportamento pela Universidade de São Paulo (USP)
Uma das queixas mais frequentes e comuns entre idosos em todo o mundo refere-se à perda de memória. A reclamação pode variar, segundo diversos estudos, entre 8% e 50% dos pesquisados. E normalmente, além dos efeitos idade avançadao problema está associado sintomas depressivos Isso é ansioso, baixo nível de escolaridade Isso é síndromes de demência.
Mas o que é memória?
A memória, no senso comum, é a capacidade do cérebro de “armazenar” informações e, quando relevante ou necessário, “recuperá-las”. Nessa perspectiva, o falecido professor Ivan Izquierdo (1937–2021), um dos maiores estudiosos da memória no Brasil, define o termo como “aquisição, conservação e recuperação de informações”.
O esquecimento — em linguagem técnica, amnésia — é a falha no processo de evocação dessas informações, ou seja, das memórias. A amnésia pode ser permanente e progressiva, como ocorre nas síndromes demenciais; ou transitórios, como os resultantes de estresse, uso de substâncias ou mesmo lesões, como na maioria dos AVCs.
Portanto, as queixas subjetivas dos idosos quanto aos déficits de memória não decorrem, em sua maioria, de eventos patológicos, mas de estados transitórios, que devem ser adequadamente abordados clinicamente.
Identidade e memória
Principalmente para os idosos, a perda ou percepção de falha de memória é um evento altamente dramático, que atinge também familiares, amigos e cuidadores. Afinal, além de afetar a execução de diversas atividades diárias (e, consequentemente, a qualidade de vida), também afeta a identidade do indivíduo.
Na obra “Em Busca da Memória”, de 2008, o neurocientista Eric Kandel, que tem se dedicado ao estudo da memória, reforça a ideia do drama dos déficits de memória: a perda da memória leva à perda do sentimento de si mesmo, da história de vida e de interações duradouras com outros seres humanos.
No entanto, para compreender as “falhas de memória” com mais precisão, três considerações são importantes:
- Os estados emocionais são os principais moduladores da formação da memória;
- Memória é um termo genérico – o que existe são diferentes sistemas de memória;
- A consolidação de diferentes tipos de memória requer mudanças na estrutura e função do cérebro.
Memória e emoção
Tendemos a memorizar os fatos de nossas vidas, positivos ou negativos, que possuem uma alta carga emocional. Isso envolve estruturas cerebrais como amígdalae redes neurais, como o sistema dopaminérgico, mais conhecido como sistema de recompensa.
Considerando as nossas memórias autobiográficas, a má notícia é que não temos autonomia para decidir o que será memorizado. Fatores como transtornos depressivos, transtornos de ansiedade e até mesmo o estresse afetam o processamento da memória em todas as suas fases, sejam elas aquisição, consolidação e recuperação de memória. Esses distúrbios são comuns em populações idosas em todo o mundo, incluindo no brasil.
Sistemas de Memória
O que vivenciamos diariamente pode – ou não – ser memorizado. E isso é natural. Por exemplo: é quase certo que você não se lembra do que comeu no almoço no dia 5 de junho de 2023. E isso é bom, porque — a menos que você seja um gourmet obcecado por tudo que come — informações ou experiências irrelevantes são mantidas apenas por um período. curto período de tempo em nosso cérebro. Isso é o que chamamos de memória de curto prazo.
Outras informações ou experiências duram dias, meses e até a vida toda. Estas são chamadas de memórias de longo prazo. Portanto, temos sistemas de curto e longo prazo. E essas informações consolidadas no sistema de longo prazo possuem conteúdos específicos.
Em relação a estes conteúdos, as memórias podem ser classificadas em diferentes ‘tipos’ ou categorias:
- Memórias não declarativascomo as processuais (ciclismo ou natação, por exemplo), que são, depois de consolidadas, realizadas automaticamente;
- Memórias declarativasque pode ser autobiográfico (por exemplo, a morte de um ente querido) ou semântico (como o seu conhecimento de biologia).
Diferentes sistemas de memória são processados em diferentes regiões do cérebro, o que nos leva a acreditar que não existe um “lugar” ou “disco rígido” onde a memória é armazenada.
Ressalta-se que, em relação à memória, duas estruturas do córtex temporal medial são fundamentais: a estruturas do hipocampo e a córtex pré-frontal. A primeira é fundamental na formação de novas memórias. A segunda está relacionada ao processo de recuperação, ou seja, à evocação de informações antigas armazenadas no cérebro.
No entanto, ao longo do tempo, a recuperação é cada vez mais sustentável apenas se representações neocorticais, que são configurações elétricas e químicas em redes neurais distribuídas no neocórtex e que representam nossas ‘memórias’. É importante destacar que essas estruturas sofrem diminuição da densidade devido ao processo natural de envelhecimento.
Contudo, a diminuição da densidade neural nestas áreas não significa uma ‘tragédia cognitiva’, dado que o cérebro é naturalmente ‘plástico’, ou seja, tem capacidade de reorganização e adaptação.
Este fenômeno, estudado desde a década de 1970 por Mark Rosenzweig e seus colaboradores na Universidade da Califórnia, Berkeley, é denominado plasticidade neural e comportamental, e não é exclusivo de “cérebros jovens“.
Memória, aprendizagem e envelhecimento
A capacidade do cérebro de se reorganizar e adaptar pode ser induzida ou facilitada através da aprendizagem. Por isso, é muito importante aprender sempre coisas novas, e o envelhecimento não é desculpa para o chamado sedentarismo intelectual.
À medida que aprendemos, modificamos a estrutura do nosso cérebro. Em outras palavras, a consolidação de informações (memórias) em nosso cérebro requer mudanças no estrutura e funcionando em termos molecular.
Podemos, portanto, dizer que a memória não é algo estático. O pesquisador Gilberto Xavier define memória como a capacidade do ser humano de mudar seu comportamento com base em experiências anteriores. Ou seja, a memória é algo dinâmico, sempre relacionado ao ato de aprender, e que muda ao longo da vida. Não é apenas uma “imagem estática” de como o cérebro funciona.
Os déficits de memória não estão relacionados apenas à diminuição da capacidade de lembrar eventos ou compromissos passados, como expresso nas queixas subjetivas de muitos pacientes sobre a memória. Eles também estão ligados à capacidade (ou falta dela) do nosso cérebro de “construir” novas memórias e “reconstruir” as antigas. Esta construção e reconstrução, sempre dinâmica, tem também como ingrediente importante o processo de esquecimento.
Sim: tão importante quanto “lembrar” é “esquecer”. Na verdade, a condição cerebral de “não esquecer nada” relacionado às nossas experiências (ou seja, à nossa memória autobiográfica) é considerada uma doença. Raro e conhecido como Hipertimésia (HSAM) ou Síndrome de Supermemória.
Parafraseando Ivan Izquierdo, podemos considerar que nossa identidade não está relacionada apenas com o que lembramos, mas também com o que esquecemos. Portanto, em condições normais (não patológicas), somos, em grande medida, responsáveis não só pela construção, mas também pela manutenção da nossa memória.
Este artigo foi republicado em A conversa. Leia o artigo original.
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